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A Ilha Fantástica: DO ORAL AO ESCRITO - re-interpretação ou transposição?

Quinta-feira, 08.12.11

A escrita de Germano Almeida e mais precisamente a da sua obra A
Ilha Fantástica
é, provavelmente, um dos casos mais curiosos da
literatura cabo-verdiana. Assim, como os escritores anteriores (da renascença)
dessa literatura cujo expoente máximo é Baltazar Lopes, o autor soube
privilegiar o pragmatismo da expressão e não fez depender o literário do
perfeccionismo linguístico.

Segundo Aguiar e Silva (1997: 625) “o texto é sempre, sob modalidades
várias, um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifónica na qual confluem,
se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos,
outras vozes e outras consciências.” Segundo esta teoria, A Ilha Fantástica poderá ser considerado um texto literário
resultante, preferencialmente, de um intercâmbio, entre a escrita e a oralidade[1].
O oral aparece como um intertexto[2] da escrita.

A recuperação ou reintegração do intertexto oral na escrita
literária não é uma prática exclusiva do escritor Germano Almeida e dos
escritores cabo-verdianos em particular, mas uma prática nas literaturas
africanas de um modo geral. Os estudiosos dessas literaturas têm sempre
procurado formas de equacionar esta relação oral/escrito.

Mafalda Leite (1998) apresenta duas ideias que se tem acerca
do assunto: a ideia de continuidade assente no princípio de que o
escritor africano usa o conto porque este é o género que permite estabelecer a
continuidade com as tradições orais. Ou através da exploração dos ritmos e dos
temas, usando a língua como elemento potencial da captação estilística e vendo
neste trabalho uma espécie de natural mimetização ou reprodução da oralidade; a
segunda é a ideia de transformação em que a língua é apontada como o primeiro
nível de manipulação e os géneros aparecem como nível superestrutural.

Entre conceitos de oralidade fingida de Alioune Tine,
re-interpretação e transposição de Abiola Irene, Leite (Op. cit.) considera que
os dois últimos termos prestam melhor ao processo de recriação que a literatura
pressupõe, porque uma das mais importantes propriedades da literatura e do
texto literário é a ficcionalidade, definida como um conjunto de regras
pragmáticas que regulam as relações entre o mundo instituído pelo texto e o
mundo empírico. O texto literário constrói um mundo fictício através do qual
modeliza o mundo empírico, representando-o e instituindo uma referencialidade
mediatiza.

O privilégio que é dado ao pragmatismo das expressões revela
um princípio muito válido nas literaturas africanas quanto sabemos que elas
transportam uma mensagem com enorme carga social.

A incorporação do intertexto oral é feita principalmente pela
forma como o autor aborda o(s) assunto(o) da obra. Ele procura representar
literariamente o seu povo e o primeiro instrumento de textualização é a língua.
Nesta linha Salvato Trigo (s/d: 80), estudioso das literaturas africanas,
defende que “o importante é que o escritor busque uma forma artística, moldada
nos cadinhos estilísticos e ético do povo que ele procura representar
literariamente”.

Os traços
ideolectais e sociolectais plasmam uma mestiçagem do discurso gerada por uma
interferência de língua em que ao português se vem juntar o cabo-verdiano
(crioulo). O português misturado com o léxico cabo-verdiano serve de veículo ao
narrador e às personagens para transmitir tudo aquilo que faz parte das
tradições orais e que engloba a literatura oral. Tal hibridismo é mais
significativo a partir do momento em que a acção da narrativa estancia nos ambientes
tradicionais, usado fundamentalmente por personagens pertencentes ao grupo dos
mais velhos e dos iletrados.

Como observa Maria Lúcia Lepecki (1988) a primeira
construção narrativa à qual se vai sobreimprimir[3]
outra a fala
oral, presente e distanciada do texto que vamos lendo remete-nos para o saber
de pessoas comuns, gente do povo que contou os casos. As estórias enraízam-se
na história da comunidade e isso tem pelo menos uma consequência a nível da
metáfora: ela acaba por referir, sempre (ainda que por sugestão subtilizada
quase no máximo), a realidade concreta de Cabo
Verde
.

As estórias contadas pelo narrador, por Nho João e Djonga,
por exemplo, são significativas. O caso de Mari Bijome é também relevante no
que diz respeito ao dialogismo que se estabelece entre o português e o crioulo.

 

" Ele chamou-me, eu não queria cudir (...). Ele meteu-me
no meio de uns tarafes, deitou-me na areia e pegou em mim e depois começou a
dizer: bijome, bijome. Foi à força! Ele pegou em mim. (...) foi aquele demónio
daquele João Manco que deu-me eles. E eu trouxe eles para bocê." (p.61).

 

O narrador de A Ilha
Fantástica
não deixa de
atribuir a cada personagem a sua fala própria. Através da linguagem de cada uma
é possível diferenciar os mundos a que pertencem.

O processo discursivo instituído tem por modelo o contador
tradicional de estórias - o griot africano. Neste particular Salvato Trigo (op. Cit. p. 82) advoga que " quando falamos do
griotismo na literatura, estamos a significar um certo texto em que o seu autor
tenha conseguido transmitir para a escrita a polifonia e a gestualidade da
oratura."

Germano Almeida consegue com mestria instituir tal griotismo
já referido, uma vez que A Ilha
Fantástica
é uma narrativa tributária dessa técnica que as literaturas
africanas modernas usam e que consiste na construção do texto literário com
base no molde da literatura oral, ou seja, da oratura.

A sua obra
literária é o lugar teórico-prático onde a história, as tradições e valores, as
crenças/mitos se estruturam como cultura literária; participa na categoria dos
textos que fazem a síntese entre os textos anteriores, orais, e os textos
contemporâneos, escritos para instituírem uma escrita original. Assim, é que a
obra reescreve a história recuperando os eventos que se referem aos famosos
naufrágios; as tradições e valores nas festas de casamentos e práticas de ritos
iniciáticos; as matanças de porcos; os velórios etc. Crenças e mitos nos
rituais de guarda-cabeça; fantasmas como: canelinhas, gongons, pateados,
catchoronas, bruxas…

O aprisionamento
da oralidade na escrita, como considera o professor Alberto Carvalho (1995: 84)
ao referir-se a Chiquinho de Baltasar Lopes, “não tem por objectivo a sua
destruição, mas o seu resgate e a sua inclusão no processo cultural,
exactamente do mesmo modo que ele, sujeito-autor de escrita, possui uma alma de
menino feita de oralidade”.

 


 

BIBLIOGRAFIA

 

 

AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura, 8ª Ed.
Coimbra, Livraria Almedina, 1997

ALMEIDA, Germano, A Ilha Fantástica, Mindelo, Ilhéu
Editora, Colecção “Estórias”, 1994.

CARVALHO, Alberto,
" O ‘abismo’ da (oralidade e da) Escrita em Chiquinho de Baltazar Lopes”, in
DISCURSO
n.º 9, Universidade Aberta, Fev. 1995.

LEITE, A. M., Oralidades e Escritas Nas Literaturas
Africanas
, S/l, Edições Colibri, 1998.

LEITE, Ana
Mafalda, A Poética de José Craveirinha,
Lisboa, Ed. Veja, Coleção Palavra Africana, 1991.

LIPECKI, Maria
Lúcia. Sobreimpressões, Estudos de
literatura Portuguesa e Africana
, Lisboa, Edições Caminho, 1988.

TRIGO, Salvato, Literatura Comparada,
Afro-Luso-Brasileira,
Lisboa, Ed. Veja. s/d.



[1]     Usa-se aqui o
conceito de oralidade com uma dimensão ampla, abrangendo o sentido de oratura e
tradições orais ou ainda de literatura oral.

[2]     Intertexto
é entendido como o texto ou o corpus de textos com os quais um determinado
texto mantém a relação de intertextualidade.

[3]    Sobreimprimir - usado na
acepção que tem em cinematografia

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por Mateus Monteiro às 18:14


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